a)
“Bastará uma leitura superficial do Novo Testamento para convencer-nos de que a própria vida de Jesus de Nazaré é, em
certo sentido, uma vida litúrgica, ou, se preferir, sacerdotal”.
“Não
nos é necessário entrar em mais pormenores. Basta que afirmemos que o Novo
Testamento nos apresenta o ministério histórico de Jesus – e, por conseguinte,
a sua vida inteira – como um processo litúrgico ou, melhor dito, como a
liturgia, a vida de adoração propriamente dita, aceita por Deus. Neste sentido,
o culto cristão tem por fundamento o “culto messiânico” celebrado por Jesus no
período que medeia entre Sua encarnação e ascensão”.
“Poder-se-ia
indagar se a “liturgia” de Jesus de Nazaré – o resultado singular de ação
expiatória, que já protegia o mundo antes da encarnação e agora frutifica no
presente senhorio de Cristo – “considerada também como obra sacerdotal” – não
alcançará sua suprema glória e plenitude no tempo da parousia”.
“A
adoração da Igreja, portanto, tem uma dupla fundamentação cristológica: o culto
celebrado pela vida, morte e glorificação do Cristo encarnado, e o culto
celeste que, na glória, Ele celebra até ao dia do mundo vindouro. Entre esses
dois atos culturais de recapitulação existe um liame não só teológico, mas
também cronológico, embora o culto celeste não tenha as interrupções próprias
do culto terreno, devido ao seu ritmo semanal. É o que se depreende do
Apocalipse: mesmo no céu há um templo (7. 15; 11.19; 14.17; 15. 5, 8) e um
altar (6. 9; 8. 3, 5; 9.13; 14.18; 16. 7) antes da vinda da nova Jerusalém na
qual não haverá templo (21. 22)”. “((...) a questão – colocada por Barth e por
Paquier e não admitida por Hahn – de saber-se há um fundamento cristológico
para o culto no fato de que o culto da Igreja ilustra e atesta as duas
naturezas de Cristo. Efetivamente não deve ser omitido o tratamento do problema
(de resto altamente interessante) da pessoa do Cristo, que é o fundamento do
culto porque é o ponto em que Deus e o homem se encontram e estabelecem união,
assim como o culto é o encontro e a união entre Deus e o Seu povo)”.
2. A presença de Cristo no culto e a
“epiklesis”
a) “Jesus Cristo inaugurou a adoração da
Igreja quando instituiu a celebração da Ceia do Senhor. Partindo o pão, disse
Ele: “Isto é o meu corpo”. Semelhantemente, declarou que o cálice da nova
aliança era o Seu sangue. Mais ainda, prometeu estar com os que são seus até o
fim do mundo (Mt 28. 20) e estar no meio deles quando dois ou três estiverem
reunidos em Seu nome (Mt 28. 20)”.
“Aquele
que é o Pão da Vida que dá vida eterna (Jo 6. 51-58), se dá a nós e, suscitando
e fortalecendo-nos a fé, nos atrai e une a Si. O meio principal mediante o qual
Ele atesta a Sua presença são a proclamação do Evangelho e a comunhão
eucarística: “Quem vos der ouvidos, ouve-me a mim” (Lc 10. 16); “Isto é o meu
corpo, isto é o meu sangue”. A adoração cristã, portanto, é acontecimento de
salvação”.
“A
“epiklesis” litúrgica – cuja primeira manifestação é, talvez, a invocação
“Maranatha – tem uma longa história. A partir do século II, a “epiklesis” começou a ser cada vez mais
frequentemente dirigida ao Espírito Santo, para que viesse fazer do culto o ato
de salvação prometido e esperado, e assegurasse aos fiéis a presença real e a
comunhão do Cristo. Nos tempos apostólicos o Maranatha provavelmente também não era pronunciado no começo do ato
de culto, mas sim no momento da celebração eucarística, embora se reconhecesse
que Cristo estava presente desde o início da reunião.
“Assim
colocada no lugar a ela reservada pela tradição ortodoxa, a “epiklesis” demonstra que, apesar de toda
a glória de que se reveste (...), o culto não equivale ainda o Reino”.
3. O culto como recapitulação da história da
salvação
“Vimos
que o culto na Igreja só se torna possível porque Jesus Cristo ofereceu por seu
ministério terreno, o culto suficiente e perfeito”.
“Não
é o culto, mas sim Jesus Cristo o que recapitula, isto é, justifica e dá
cumprimento à história da salvação, atribuindo-lhe razão de ser. No entanto,
“recapitulare” significa, na linguagem mais comum, simplesmente “resumir”,
“confirmar” ou ainda “repetir”. O termo é perfeitamente apropriado: o culto
resume e confirma sempre de novo a história da salvação cujo ponto culminante
se encontra na intervenção encarnada do Cristo. Tal recapitulação diz respeito
à história da salvação tanto no sentido cronológico como no teológico”.
“O
culto é, de início, anamnese (reminiscência, recordação) da obra passada do
Cristo. Ao instituir a Eucaristia, isto é, o culto cristão, Jesus disse: TOUTO
POIEITE EIS EMEN ANAMNESIN (I Co 11. 24s). A anamnese ou memorial (ANAMNESIS)
(...), é algo muito diferente de um mero exercício da memória. É uma
reatualização, uma reconstituição do passado de forma a torná-lo presente, e um
compromisso. É nessa doutrina que se fundamenta também o rito pascal, o qual
Êxodo 12.14 diz ter sido instituído Le-Zikaron,
isto é, “por memorial”. Quando se trata da história da redenção, passado é
atual”.
“Mas
o culto, enquanto anamnese, não é somente “reatualização do passado”. Do ponto
de vista dos celebram a memória da morte de Cristo, ele é ainda um engajar-se
no serviço do Cristo, uma confissão de fé”.
“Mas
o culto cristão não recapitula somente a vida, morte e ressurreição de Cristo,
tornando-as novamente atuais e presente. De fato a história da salvação não se
reduz a fatos meramente passados. Ela tem em si também algo que está por vir.
Ao recapitular a história da salvação, o culto volta-se também para o futuro
(...), é também antecipação ou antegozo do retorno de Cristo e do Reino que Ele
então há de estabelecer”.
“Devemos
mencionar uma terceira dimensão neste exame de recapitulação cronológica da
salvação efetuada pelo Espírito Santo no culto. Não se trata somente do passado
que se torna presente, e do futuro que já aflora na adoração”.
O
culto é, por conseguinte, a recapitulação da história da salvação, na medida em
que reatualiza o passado, antecipa o futuro e glorifica o presente messiânico.
É exatamente por essa razão que se pode chamar o culto de um fenômeno
escatológico”.
“O culto cristão é a vanguarda daquele anseio
cósmico de que fala São Paulo, daquela ânsia pela restauração de que Deus, em
Seu amor, estabeleceu desde o início (Rm 8.18ss). Ele não restaura de modo
evidente o Paraíso, nem força o aparecimento do Reino. Ele justifica a
esperança e fornece as arras, propiciando o dia e o lugar em que o passado
anterior à queda e o futuro posterior ao julgamento possam, um, perdurar ainda
e, o outro, já irromper”.
“Mas
o culto recapitula a história da salvação
também no plano teológico. O que significa essa afirmação? Para responder a
essa pergunta necessário se torna recordar de que elementos se constituem a
história da salvação. (...) a história da salvação se constitui de uma
revelação da vontade salvadora de Deus, de uma reconciliação que torna possível
o cumprimento dessa vontade e de uma proteção que salvaguarda a eficácia dessa
mesma vontade. A história da salvação, portanto, engloba três aspectos:
profético, sacerdotal e real. O culto, então, recapitula a história da salvação
na medida em que for profética, sacerdotal e real, em relação a Cristo, que é,
que era e que há de vir. O culto, no qual é proclamada a Palavra de Deus,
recapitula e resume tudo o que Deus nos ensinou acerca da sua vontade para o
mundo. O culto, no qual se celebra a Eucaristia, recapitula e resume tudo o que
Deus fez no sentido de reconciliar consigo o mundo”.
“Dentre
todos os problemas de caráter sistemático que seria necessário examinar,
menciono somente um, que é da mais alta importância, a saber, a relação entre o
culto da Igreja e a continuação da história da salvação após haver esta
atingido em Jesus Cristo tanto o seu ponto culminante como a sua plenitude”.
“Esse
evento, que absorvera e se concentrara em si a história da salvação inteira,
desde a expulsão do Paraíso até a manhã da Sexta-Feira Santa tem ainda de
fazer-se sentir até ao fundo de sua eficácia, num processo que, entretanto, será
interrompido antes do seu termo pela vontade de Deus de dar fim ao mundo”.
A
história da salvação, portanto, continua de modo eficaz na forma de anamnese do
seu evento central. Aquilo que uma vez aconteceu, na forma de substituição, em
favor do mundo inteiro, agora se expande, pelo poder e pela operação do
Espírito Santo, tornando-se realidade ontológica para os que se alegram com
aquele evento primeiro e dele vivem. Pode-se por isso afirmar que o culto
cristão é um dos agentes mais importantes da história da salvação. A história
da salvação é continuada pelo culto (...). Essa é uma das razões por que ele é
necessário. O culto é um instrumento de que o Espírito Santo se serve para
desempenhar sua tarefa, para tornar eficaz hoje e agora a obra passada do
Cristo e assim referir a essa obra, de maneira salvífica, os homens e os
eventos de hoje, tornando-os beneficiários dela.
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